Não obstante o carácter não sistemático da esmagadora maioria dos textos de Burke, não obstante a variedade de registos e contextos em que se situam, subjaz-lhes um ponto de vista coerente e recorrente no tocante às ideias políticas e sociais que se pode apelidar com todo o rigor de conservadorismo político (uma forma específica de tradicionalismo), ou mais precisamente, de "utilitarismo historicista".
Desta forma - e de acordo com o ângulo de abordagem que privilegiei - para dimensionar convenientemente o conservadorismo de Edmund Burke, é necessário explicitar e articular três noções ou coordenadas ideológicas fundamentais, a saber, a antropologia, a sociologia e a política. Com efeito, o ponto de vista de Burke e dos conservadores em geral, pressupôe, não obstante a sua forma de apresentação deliberadamente a-sistemática e - sublinho - enganadoramente a-ideológica, uma visão coerente do homem, da sociedade e das instituições em geral, e consequentemente uma praxis.
Em primeiro lugar, analisemos cada uma dessas noções de forma genérica, tendo em conta que só por razões expositivas e analíticas elas surgem aqui em separado
- Assim, a antropologia, significa aqui concepção de homem ou visão da natureza humana. Eis um aspecto decisivo no tocante às ideologias modernas, e às filosofias sociais e políticas em geral, que lhes confere substância e individualidade. Neste âmbito opera-se com Burke uma revisão muito crítica do humanismo racionalista e voluntarista que dominou as luzes revolucionárias, bem como uma certa modernidade política e cultural de orientação progressista e universalista. Consequentemente desemboca-se com Burke num pregnante pessimismo antropológico que iremos aprofundar seguidamente, delimitando os seus pressupostos, para depois estabelecer as suas implicações sócio-políticas.
- A sociologia, por outro lado, envolve em Burke diversas e ricas dimensões, como sejam, o método funcionalista e consequencialista de análise das questões políticas e culturais, o qual valoriza grandemente o carácter social ou grupal da vida do homem, elemento precursor da sociologia moderna; mas envolve também a dimensão substancial de uma concepção orgânica ou holista de sociedade, que implica, entre outras consequências de relevo, a naturalização da desigualdade e da diferença, categorias típicas da Direita política em geral.
Convém porém esclarecer melhor o sentido terminológico do tópico "sociologia", que me parece fazer todo o sentido neste contexto. Não significa que Burke seja um sociólogo no sentido moderno como Comte, Marx ou Max Weber. Tem apenas a ver com a importância conferida por Burke aos aspectos substanciais e metodológicos atrás referidos, os quais se referem à vida social do homem. Este último tópico é decisivo e fundamental nos tradicionalismos anti-individualistas surgidos após as revoluções modernas. Todavia, em Burke assume inequívocos parâmetros de modernidade na medida em que apresenta contornos funcionalistas e relativistas, os quais determinam de uma maneira profunda o seu historicismo tradicionalista.
- A política conservadora e tradicionalista de Burke, por seu turno, deriva directamente da antroposociologia já parcialmente explicitada, que procurarei clarificar e concretizar ao longo da exposição. Fundamentalmente, está aqui em jogo - e sublinho esta ideia - uma perspectiva de "utilitarismo historicista" a respeito das Instituições em geral (políticas, económicas, sociais, culturais, religiosas) que obviamente implica uma praxis. Adianto desde já que o carácter eminentemente prático ou pragmático (entenda-se anti-especulativo) da política burkiana é determinante para se avaliar simultaneamente a especificidade ideológica e a paradoxal modernidade do seu tradicionalismo conservador
Depois de esclarecer em que medida é que o tradicionalismo conservador de Burke é, ou resulta, de um ponto de vista de utilitarismo historicista, estaremos em condições de compreender as motivações profundas que levam os conservadores a defender acerrimamente as instituições constituídas; as instituições dadas, legadas pela tradição, ou se quisermos, esculpidas pelo tempo. Eis uma metáfora válida para significar o espírito do conservadorismo. Instituições políticas como a monarquia constitucional, sociais, como a família, económicas, como o mercado, religiosas, como o cristianismo, constituem de facto bons exemplos daquilo que para Burke e os conservadores deve ser preservado.
Feita esta análise preliminar, passemos a uma abordagem mais profunda da antroposociologia burkiana, para depois derivar as suas consequências políticas.
A este respeito, mostrar a articulação profunda entre antropologia e sociologia, servirá também para detectar as tensões entre essencialismo antropológico e funcionalismo sociológico, intrínsecas ao tradicionalismo conservador de Burke, ainda que não sejam as únicas que se podem apontar
Com efeito, aquilo que o homem é (antropologia), ao contrário do que pensavam os defensores do Direito Natural Moderno, não se pode abstrair das suas condições sociais de existência (sociologia), ou se quiserem, dos grupos, das instituições, das hierarquias, o mesmo é dizer, da história. Aqui aprofunda-se e actualiza-se o chamado modelo aristotélico de sociedade, que se opõe - substancial e metodologicamente - ao contratualismo moderno, atomístico e abstractizante, tendo este último servido de instância legitimadora dos regimes demo-liberais e em particular da revolução francesa, que tanto obcecou e preocupou Burke.
Assim, à luz dos teorizadores do Contrato Social como Hobbes, Locke e Rousseau, os homens são livres e iguais por natureza, resultando a sociedade política de um acto de vontade. Mesmo tendo em conta que a figura deste contrato não deve ser tomada à letra, estamos em face de um ponto de vista inequívoco de individualismo ou atomismo social que ainda hoje marca as concepções sociais e políticas, bem como as próprias características desagregadoras das sociedades contemporâneas, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista ético-moral. Eis uma faceta da modernidade que desde sempre tem sido o alvo da crítica dos conservadores.
Ao invés, no quadro da perspectiva de Burke, a sociedade na sua articulação natural e orgânica com as instituições políticas e outras, não resulta de um contrato - no sentido jusracionalista do termo - mas em rigor é construída pela ordem espontânea e auto-poiética da história. Neste sentido, o homem - individualmente considerado - não é um ser determinante mas determinado pela história, ou seja, pela sociedade e pelas instituições.
Contudo, o fecundo realismo sociológico de Burke não é imune a uma perspectiva essencialista e universalista da natureza humana, de clara filiação cristã - mas não se cinjindo a isso -, que deita por terra o optimismo antropológico e perfectibilista das luzes, assim como as esperanças de melhorar consideravelmente a sociedade e as instituições constituídas.
Desta forma, o pessimismo antropológico de Burke não tem apenas a ver com o estigma causado pelo pecado original, escorando-se também numa perspectiva rigorosamente imanente, de acordo aliás com os padrões intelectuais da modernidade ilustrada, o que confere ambivalência e complexidade ao seu tradicionalismo conservador.
Apesar de desconstruir o modelo antropológico optimista das luzes revolucionárias, a perspectiva simultaneamente imanente e transcendente que fundamenta a antropologia burkiana não implica uma rejeição liminar ou linear do iluminismo e da liberdade individual, como algumas vezes se tem pensado, de forma simplista e apressada, colocando a perspectiva de Burke ao lado dos mais ferozes e intransigentes reaccionários, que criticaram a revolução francesa com pressupostos de natureza muito diversa. Por outro lado, isto não significa também que se possa ou deva fazer uma leitura liberal do autoritarismo tradicionalista mas anti-despótico de Burke, tendo em conta alguns aspectos separados do seu pensamento e das suas posições enquanto parlamentar Whig.
Com efeito, o pensamento contra-revolucionário de Burke em muitos e significativos aspectos - alguns deles já enunciados - respirou os ares sadios da modernidade. Ou seja, uma atmosfera intelectual liberta de fumos e nevoeiros metafísicos, que muito ficou a dever a pensadores britânicos como Bacon, Hume e Locke, porque imbuída de empirismo, realismo e pragmatismo.
Podemos aferir isto nos pressupostos epistémicos empiristas que norteiam a perspectiva de Burke nas questões já focadas e suas consequências de ordem político-institucional.
A este respeito, são de referir o historicismo imanentista que suporta o seu tradicionalismo, o realismo político e sociológico, o funcionalismo sociológico com consequências relativizantes nos seguintes tópicos:
na análise da operatividade social das instituições, das ideologias e das crenças. Esse tipo de perspectiva está aliás bem patente na sua obra mais conhecida, as Reflexões sobre a revolução francesa.
Neste texto, Burke, entre outros aspectos, avalia sobretudo as consequências sociais concretas da defesa da filosofia abstracta dos Direitos do Homem num contexto determinado, como era o da França iluminista e revolucionária do seu tempo. E as consequências, de acordo com a leitura pessimista de Burke, como sabem, foram terrríveis e catastróficas, tendo constituído até perversamente uma negação dos próprios Direitos do Homem. Na medida em que partindo da mais desconcertante anarquia, o turbilhão revolucionário acabou por se converter no mais insidioso despotismo. E este é apenas um exemplo, talvez o mais emblemático, de uma análise eminentemente consequencialista da política. Mas podemos apontar outros. O texto das Reflexões é fertil neste tipo de enfoque. Compreender o alcance e as consequências deste método acarretará uma resposta pertinente em relação a questões decisivas como as seguintes: Porque é que Burke é tão refractário em relação ao criticismo secularista das Luzes? Porque é que a teoria da Vontade Geral de Rousseau não é uma teoria política aceitável? Porque é que a Religião revelada é uma instituição indispensável numa sociedade?
Seja como fôr, é impossível desligar este funcionalismo consequencialista de âmbito sociológico, tão característico do conservadorismo burkiano, da dimensão essencialista de pessimismo antropológico. Esta contamina constantemente o seu realismo sociológico e histórico. Daí que o termo antroposociologia nos pareça o mais adequado para significar os não assumidos fundamentos deste conservadorismo.
Por conseguinte, o enganador realismo sociológico de Burke serve para reforçar de forma magistral a verdadeira pedra angular do pensamento direitista desde 1789: uma visão pessimista da natureza humana.
Esta componente fundamental do tradicionalismo entra assim em divergência profunda com o optimismo antropológico que determinou o voluntarismo revolucionário; e, de uma maneira geral, utilizando uma terminologia popperiana, todas as tentativas de concretizar uma engenharia social de larga escala. Desta maneira, a crença na perfectibilidade do homem implica nos revolucionários (e nos reformadores sociais radicais de todos os tempos) uma visão completamente diferente da sociedade, das instituições e do próprio processo histórico, legitimando de uma forma voluntarista o progresso.
Tendo em conta a importância da componente antropológica na individuação dos projectos sociais e políticos, esta merecerá da minha parte uma abordagem mais aprofundada, no que se refere ao pensamento de Burke.
E a este respeito importa afirmar o seguinte:
Aquilo que de diferentes maneiras, Burke e os conservadores de todos os tempos nos procuram dizer é que a imperfeição, a insuficiência e a dependência dos indivíduos são um dado adquirido. Tanto do ponto de vista biológico, como do ponto vista emocional e cognitivo. Esta perspectiva antropológica, no caso de Burke, é reforçada e enriquecida por um fundamento religioso e bíblico. Não devemos esquecer que Burke é sobretudo um pensador católico que se insurge contra os excessos criticistas dos Philosophes, eivados de secularismo deísta e até ateísta.
No entanto, mesmo no domínio religioso há que distinguir uma dimensão sincera e profunda de crença religiosa, que tem consequências antropológicas significativas, de uma dimensão não menos importante da religião que tem a ver essencialmente com a sua instrumentalidade em termos sociais e políticos, a qual de resto é coerente com o pessimismo antropológico. Esta defesa instrumental da religião revelada e constituída adequa-se profundamente ao funcionalismo sociológico-histórico do conservadorismo. Nas Reflexões sobre a revolução francesa e noutros textos de Burke a Religião revelada, ao contrário da natural, é encarada como um factor importantíssimo de coesão social e política, pois só este tipo de religião, tendo em conta as suas características, é portadora de funcionalidade social. Eis um ponto de vista típico da Direita política em geral e dos tradicionalismos. No entanto, a particularidade modernista da abordagem de Burke, que o situa claramente no âmbito de uma direita moderada, reside na não confusão entre ordem transcendente e ordem imanente da história e da política - confusão própria do radicalismo contra-revolucionário, ainda que haja uma articulação, e uma colaboração, por assim dizer, de ambas.
De facto, atendendo aos atributos essenciais do ser humano, só o pathos e a coercitividade sobrenatural (o medo de um castigo além-túmulo) trazidos por uma religião revelada como o cristianismo podem motivar suficientemente um respeito pela autoridade, pela ordem social e pelo outro. Por conseguinte, uma sociedade sem uma moral revelada é uma sociedade profundamente doente, condenada à desagregação, à anarquia e até ao despotismo com contornos totalitarizantes. Uma vez mais se revela aqui a articulação profunda entre essencialismo antropológico e funcionalismo sociológico, reveladora da paradoxal singularidade do tradicionalismo conservador de Burke.
Em que medida é que esta antropologia - moderna e tradicional ao mesmo tempo - implica uma desconstrução do racionalismo político veiculado pelo contratualismo revolucionário?
Na medida em que fundamenta e reforça a seguinte ideia:
Na imediatez da vida social, a esmagadora maioria dos indivíduos não se guia pela sua capacidade racional consciente - condição de possibilidade da liberdade civil na óptica de Rousseau. Este, é importante referi-lo, corporiza magistralmente o modelo de teoria política inaceitável para Burke, por esta e por outras razões de fundo, que infelizmente não terei tempo de aprofundar aqui. A outra razão de fundo para a rejeição do contratualismo moderno, aliás profundamente relacionada com a antropologia, tem a ver com a questão do método. Ora, para Burke, assim como para Montesquieu e Tocqueville, o método a utilizar em política é essencialmente sociológico-histórico, enquanto que para os contratualistas modernos em geral o método é essencialmente racional e dedutivo, logo inadequado por diversas razões.
Assim, de acordo com Burke, a componente racional não é de facto dominante no ser humano e um modelo teórico como o racionalismo político, presente em autores tão diversos como Locke, Rousseau e Kant passa completamente ao lado daquilo que é essencial na vida política e social, ou seja, a componente não-racional.
Segundo Burke o homem não é um ser fundamentalmente racional mas sim "religioso". Encontramos esta definição no texto já referido. Pode bem servir para significar toda a amplitude da perspectiva antropológica de Burke e quanto a mim não tem um sentido estritamente religioso, mas envolve as facetas mais seculares na abordagem dos atributos essenciais do homem. Significa que o homem é um ser essencialmente crédulo no âmbito cognitivo e comportamental, à semelhança do que dizia o céptico David Hume.
De acordo com o ponto de vista do autor das Reflexões sobre a Revolução Francesa, o que motiva verdadeiramente os homens, no âmbito da vida moral, social e política, não são os critérios de evidência racional, mas sim as paixões, as emoções e os sentimentos, bem como tudo aquilo que é marginal ou escapa a um exercício consciente e constante da racionalidade, tudo aquilo que resulta de uma adesão espontânea ou inconsciente. Daí que para os conservadores o homem seja essencialmente um ser de hábitos, de preconceitos e por conseguinte profundamente imerso na tradição. Só esses elementos possibilitam efectivamente a vida em sociedade porque disciplinam naturalmente as paixões.
O carácter essencialmente passional e espontâneo do homem implica também uma articulação profunda entre os domínios da estética e da política, questão com inegável actualidade. Ambas têm a ver profundamente com o jogo das paixões humanas e com a ordem social vigente. A própria estratégia persuasiva e estílistica das Reflexões sobre a Revolução Francesa, eivada de dramatismo nas descrições dos inauditos horrores revolucionários não é um aspecto acessório e ornamental. A retórica burkiana é bem a concretização daquele ponto de vista acerca do homem, da sociedade e da política na medida em que apela às emoções, mais talvez do que à razão.
Tendo em conta tudo isto, os fundamentos antropológicos e sociológicos do tradicionalismo de Burke, bem como a inadequação e perigosidade do racionalismo político, tornam-se agora muito mais inteligíveis.
Com efeito, no plano colectivo e social, o qual sobredetermina profundamente a vida individual, os processos de socialização, são de facto muito longos e não se constituem, por assim dizer, de um momento para o outro, ou dito de outro modo, de uma geração para outra. A sua lentidão constitutiva implica necessariamente a ideia de tradicionalismo.
Existe assim todo um conjunto de representações mentais de carácter não racional e não individual, que poderíamos definir como instituições culturais, emanadas forçosamente da tradição - ou seja, da longa duração histórica - que recebem uma valoração positiva. E isto porque possibilitam a vida em sociedade, volto a reiterar esta ideia fulcral, isto é, a conformação das potencialmente violentas e desagregadoras paixões individuais.
De facto, os preconceitos, os costumes, os preceitos morais oriundos de uma religião revelada como o cristianismo, independentemente da sua validade racional ou da sua universalidade, são operativos e funcionais do ponto de vista sociopolítico, já para não falar das instituições políticas e jurídicas - como a monarquia constitucional britânica - que têm um processo de constituição semelhante. A sua durabilidade histórica é a prova máxima de funcionalidade social e política. Nesta asserção encontramos o essencial do utilitarismo historicista de Burke. Este ponto de vista, paradoxalmente, determina e fundamenta um tradicionalismo inequivocamente escorado na modernidade e numa visão sociológica e empírica do homem. Consequentemente, este tradicionalismo não se pode confundir de forma alguma com o tradicionalismo reaccionário e providencialista de um De Maistre e de um Bonald, por exemplo, com pressupostos epistémicos e consequências políticas muito diferentes
E por isso os preconceitos, as tradições, os costumes, e tudo o que entra no campo de significação de uma ordem cultural com duração histórica e identidade própria, deve ser preservado zelosamente e não desconstruído, ao contrário do que tentaram fazer de forma irresponsável e arrogante alguns dos iluministas, através e em nome de uma razão pura e metafísica. E o resultado está à vista, diria Burke - o cortejo de excessos e violências trazido pela Revolução Francesa. A perversão completa daquilo que é verdadeiramente a vida em sociedade, a perversão completa da própria ordem histórica, a destruição do seu precioso e impessoal labor multissecular, o qual confere verdadeiramente a humanidade e a identidade ao homem. O que diria Rousseau a respeito deste ponto de vista?
Com efeito, de acordo com o parlamentar Whig, a vida em sociedade - com um certo grau de liberdade e felicidade - só é possível no quadro das limitações impostas pelas instituições às virulentas paixões dos homens. Daí que faça todo o sentido conservar aquelas que a história testou. Eis um ponto de vista com mais respeitabilidade teórica do que geralmente se pensa e que por isso mesmo importa seriamente discutir.
Posto isto, resta-me concluir esta intervenção com uma breve síntese a propósito do conservadorismo político de Burke, o qual não é mais do que uma consequência lógica de tudo o que disse atrás. Com efeito, a singularidade desta perspectiva acerca das Instituições políticas, só se torna verdadeiramente inteligível tendo em conta as coordenadas antropológicas e sociológicas atrás explanadas, na sua articulação profunda.
Por conseguinte, segundo Burke, a questão essencial em política não é ajuízar acerca da validade geométrica ou metafísica dos modelos teóricos de fundamentação das instituições políticas, como fez Rousseau. Dito de outro modo: o objectivo essencial da política não é a busca de uma forma de governo ideal porque perfeita, válida para todos os tempos e lugares, para todas as circunstâncias, ou mesmo é dizer, uma forma de governo feita à medida do Homem, abstractamente considerado. Eis precisamente o tipo de questões, que por diversas razões, não devem fazer parte do âmbito da política. Diz Burke, a respeito dos defensores dos Direitos do Homem, numa das frases mais significativas das suas Reflexões:
"The pretended rights of these theorists are all extremes; and in proportion as they are metaphysically true, they are morally and politically false. The rights of men are in a sort of middle, incapable of definition, but not impossible to be discerned. The rights of men in governments are their advantages; and these are often in balances between differences of good; in compromises sometimes between good and evil, and sometimes between evil and evil. Political reason is a computing principle; adding, subtracting, multiplying, and dividing, morally and not metaphysically or mahematically, true moral denominations." (Reflections on the Revolution in France (1790), London, Penguin, p.153)
Segundo o autor destas linhas, a questão essencial em política, no fundo, é saber se as instituições funcionam na prática ou não, independentemente da validade teórica ou metafísica dos seus modelos de legitimação, a qual passa ao lado da racionalidade política. E a única forma de ajuízar acerca da funcionalidade prática de um sistema de governo, por razões que já vimos, é testar os seu comportamento no âmbito da história. Por conseguinte, a durabilidade histórica das instituições (e não apenas as políticas) para um conservador como Burke, é um indicador seguro a respeito da sua funcionalidade social. Significa que as instituições se adequam naturalmente às "circunstâncias" - uma noção-chave no âmbito do conservadorismo de Burke - , isto é, aos condicionalismos da mais diversa ordem (sociais, culturais, geográficos), a que já fizemos referência. Desta forma fica mais clara a articulação entre "utilitarismo historicista" e tradicionalismo conservador:
"I cannot stand forward, and give praise or blame to any thing which relates to human actions, and human concerns, on a simple view of the object, as it stands stripped of every relation, in all the nakedness and solitude of metaphysical abstraction. Circunstances (which with some gentlemen pass for nothing) give in reality to every political principle its distinguishing colour, and discriminating effect. The circunstances are what render every civil and political scheme beneficial or noxious to mankind. Abstractedly speaking, government, as well as liberty, is good; yet could I, in common sense, ten years ago, have felicitated France on her enjoyment of a government (for she then had a government) without enquiry what the nature of that government was, or how it was administred? Can I now congratulate the same nation upon its freedom? Is it because liberty in the abstract may be classed amongst the blessings of mankind, that I am seriously to felicitate a madman, who has escaped from the protecting restraint and wholesome darkness of his cell, on his restoration to the enjoyment of light and liberty?" (Op. cit., p.90)
Assim, todas as questões fundamentais que entram no campo da política, e que infelizmente não poderei desenvolver aqui, como a articulação entre liberdade e autoridade, o âmbito dos direitos de cidadania, o modelo constitucional a adoptar, a relação entre política e religião, e muitas outras, equacionam-se paradoxalmente em função de um critério relativista e pragmático de "utilitarismo historicista". Este ponto de vista, na sua relacionação ambígua com a modernidade e as suas tendências imanentistas, traduz a individualidade ideológica do conservadorismo, bem como os seus paradoxos, que têm a ver sobretudo com a fractura entre essencialismo e relativismo.
Neste sentido, todas as grandes questões da política se equacionam em função de uma lógica coerente de moderantismo e equilíbrio, alicerçada nas instituições históricas, muito crítica em relação aos despotismos, que é detectável igualmente em pensadores do social e do político como Montesquieu e Tocqueville.
No tocante ao binómio liberdade-autoridade, o ponto de vista conservador de Burke, coerentemente com os fundamentos antroposociológicos atrás aduzidos, tendo em conta o contexto em que surgiu, não se pode confundir, nem com o individualismo liberal de matriz contratualista, nem com o holismo reaccionário de feição absolutista. Trata-se de um institucionalismo liberalizante que contraria todos os radicalismos, tanto de esquerda (jacobinismo) como de direita (reaccionarismo despótico). Em termos práticos podemos caracterizá-lo como um ponto de vista de autoritarismo moderado, que rejeita liminarmente as veleidades democratizantes, desastradamente ensaiadas em 1789, mas também o despotismo monárquico. Essas funestas orientações sociopolíticas têm em comum o facto de se pautarem por uma lógica de voluntarismo, inaceitável, ainda que em graus diferentes, porque nega o equilíbrio natural e regulador das instituições historicamente determinadas, dando livre curso ao jugo das paixões individuais.
Pelas razões que tenho expendido ao longo deste trabalho, torna-se então impossível confundir a perspectiva de Burke com uma qualquer forma de individualismo liberal, por definição abstractizante, seja qual fôr a sua matriz de fundamentação (contratualista, utilitarista, económica), na medida em que, no limite, dissocia ilegitima e simplisticamente o indivíduo do seu contexto social e histórico envolvente. Neste sentido, o labor hermenêutico, cultural e político dos conservadores tem sido sempre o de preservar as instituições das rebeliões individuais e colectivas, não obstante as suas imperfeições. Contrariamente, pode-se dizer com certo rigor, estabelecendo neste âmbito uma formulação clássica e possível desta divergência, eventualmente insanável, entre liberalismo e conservadorismo, que todo o labor dos teorizadores liberais tem sido o de defender e emancipar o indivíduo, quer enquanto entidade ontologicamente auto-suficiente e pré-existente, quer enquanto sujeito de direitos, dos abusos das instituições sociais e políticas tradicionais, como foi no contexto em que viveu e escreveu Burke, a monarquia absoluta É claro que a matriz antroposociológica das diversas formulações do liberalismo que historicamente têm surgido, diverge profundamente daquela que temos exposto aqui relativamente ao pensamento de Burke e dos tradicionalistas, em virtude do seu optimismo relativamente às potencialidades individuais e do seu pessimismo e olhar carregado de suspeita relativamente às instituições tradicionais. Esta postura, do ponto de vista histórico, como é sabido, legitimou e despoletou as revoluções liberais modernas, como a francesa e a portuguesa de 1820, sob o olhar reprovador e descrente dos conservadores.
Finalmente, para clarificar melhor as consequências políticas do utilitarismo historicista de Burke, podemos referir sucintamente o que está em jogo na sua crítica ao constitucionalismo revolucionário e à forma como a problemática dos direitos de cidadania é equacionada nesse contexto. Neste domínio, a posição crítica de Burke a respeito da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, (texto que significativamente estaria diante dos seus olhos durante o tempo em que redigiu as inflamadas Reflexões sobre a Revolução Francesa), é paradigmática em relação ao constitucionalismo conservador e ao seu modelo de cidadania, logicamente marcados pelo historicismo. Assim, em termos daquilo que é próprio da subtil racionalidade política, cuja especificidade procurámos caracterizar, não faz sentido edificar constituições com base em metafísicas do sujeito, com base nos pretensos Direitos do Homem. Aliás, o que Burke diz a respeito das constituições formais modernas, aplica-se coerentemente a todas as instituições sociais e políticas, e alicerça-se, em última análise, num utilitarismo historicista.
Desta forma, os reclamados Direitos do Homem, fundamento principal da constituição revolucionária e de uma cidadania alargada, não são politica e socialmente funcionais, na medida em que têm validade apenas numa dimensão de "nudez metafísica" (segundo as finas palavras do parlamentar). E 1789, segundo o olhar de Burke, provou-o melhor do que qualquer argumento teórico. De facto, o que significará politicamente, para o olhar concreto de Burke, considerarO Homem, enquanto sujeito de direitos, independentemente das circunstâncias de lugar e tempo? Uma vez mais, e de uma forma agudamente incómoda, este tipo de questionação, que podemos legitimamente alargar à problemática dos Direitos Humanos, pode destacar no ainda conturbado contexto mundial, a actualidade do seu pensamento.
Com efeito, no âmbito da política só existem direitos históricos, garantidos por instituições históricas concretas, como o sistema político e constitucional que Burke procurava preservar, das ameaças externas e internas. Assim como a liberdade, destaca Burke, ainda que considerada em abstracto seja algo de naturalmente bom, é, no entanto, um conceito vazio, inconsequente e até perigoso, se não for balizada por instituições testadas pelo tempo. Só nesse âmbito é que é possível uma certa liberdade, que no fundo nunca poderá nem deverá ser muito alargada, em virtude dos condicionalismos antropo-sociológicos já explicitados. Tudo isto mostra que no fundo existem profundas divergências entre o individualismo liberal e o institucionalismo conservador de Burke, apesar de algumas aparentes similitudes, como a defesa do mercado, e de instituições representativas e constitucionais. Por estas últimas razões também não podemos confundir o paradigma político de Burke com os pontos de vista próprios de um tradicionalismo radical e reaccionário, ainda que paradoxalmente faça todo o sentido incluir ambos os tradicionalismos na tão discutida categoria da direita política.
Desta forma - e de acordo com o ângulo de abordagem que privilegiei - para dimensionar convenientemente o conservadorismo de Edmund Burke, é necessário explicitar e articular três noções ou coordenadas ideológicas fundamentais, a saber, a antropologia, a sociologia e a política. Com efeito, o ponto de vista de Burke e dos conservadores em geral, pressupôe, não obstante a sua forma de apresentação deliberadamente a-sistemática e - sublinho - enganadoramente a-ideológica, uma visão coerente do homem, da sociedade e das instituições em geral, e consequentemente uma praxis.
Em primeiro lugar, analisemos cada uma dessas noções de forma genérica, tendo em conta que só por razões expositivas e analíticas elas surgem aqui em separado
- Assim, a antropologia, significa aqui concepção de homem ou visão da natureza humana. Eis um aspecto decisivo no tocante às ideologias modernas, e às filosofias sociais e políticas em geral, que lhes confere substância e individualidade. Neste âmbito opera-se com Burke uma revisão muito crítica do humanismo racionalista e voluntarista que dominou as luzes revolucionárias, bem como uma certa modernidade política e cultural de orientação progressista e universalista. Consequentemente desemboca-se com Burke num pregnante pessimismo antropológico que iremos aprofundar seguidamente, delimitando os seus pressupostos, para depois estabelecer as suas implicações sócio-políticas.
- A sociologia, por outro lado, envolve em Burke diversas e ricas dimensões, como sejam, o método funcionalista e consequencialista de análise das questões políticas e culturais, o qual valoriza grandemente o carácter social ou grupal da vida do homem, elemento precursor da sociologia moderna; mas envolve também a dimensão substancial de uma concepção orgânica ou holista de sociedade, que implica, entre outras consequências de relevo, a naturalização da desigualdade e da diferença, categorias típicas da Direita política em geral.
Convém porém esclarecer melhor o sentido terminológico do tópico "sociologia", que me parece fazer todo o sentido neste contexto. Não significa que Burke seja um sociólogo no sentido moderno como Comte, Marx ou Max Weber. Tem apenas a ver com a importância conferida por Burke aos aspectos substanciais e metodológicos atrás referidos, os quais se referem à vida social do homem. Este último tópico é decisivo e fundamental nos tradicionalismos anti-individualistas surgidos após as revoluções modernas. Todavia, em Burke assume inequívocos parâmetros de modernidade na medida em que apresenta contornos funcionalistas e relativistas, os quais determinam de uma maneira profunda o seu historicismo tradicionalista.
- A política conservadora e tradicionalista de Burke, por seu turno, deriva directamente da antroposociologia já parcialmente explicitada, que procurarei clarificar e concretizar ao longo da exposição. Fundamentalmente, está aqui em jogo - e sublinho esta ideia - uma perspectiva de "utilitarismo historicista" a respeito das Instituições em geral (políticas, económicas, sociais, culturais, religiosas) que obviamente implica uma praxis. Adianto desde já que o carácter eminentemente prático ou pragmático (entenda-se anti-especulativo) da política burkiana é determinante para se avaliar simultaneamente a especificidade ideológica e a paradoxal modernidade do seu tradicionalismo conservador
Depois de esclarecer em que medida é que o tradicionalismo conservador de Burke é, ou resulta, de um ponto de vista de utilitarismo historicista, estaremos em condições de compreender as motivações profundas que levam os conservadores a defender acerrimamente as instituições constituídas; as instituições dadas, legadas pela tradição, ou se quisermos, esculpidas pelo tempo. Eis uma metáfora válida para significar o espírito do conservadorismo. Instituições políticas como a monarquia constitucional, sociais, como a família, económicas, como o mercado, religiosas, como o cristianismo, constituem de facto bons exemplos daquilo que para Burke e os conservadores deve ser preservado.
Feita esta análise preliminar, passemos a uma abordagem mais profunda da antroposociologia burkiana, para depois derivar as suas consequências políticas.
A este respeito, mostrar a articulação profunda entre antropologia e sociologia, servirá também para detectar as tensões entre essencialismo antropológico e funcionalismo sociológico, intrínsecas ao tradicionalismo conservador de Burke, ainda que não sejam as únicas que se podem apontar
Com efeito, aquilo que o homem é (antropologia), ao contrário do que pensavam os defensores do Direito Natural Moderno, não se pode abstrair das suas condições sociais de existência (sociologia), ou se quiserem, dos grupos, das instituições, das hierarquias, o mesmo é dizer, da história. Aqui aprofunda-se e actualiza-se o chamado modelo aristotélico de sociedade, que se opõe - substancial e metodologicamente - ao contratualismo moderno, atomístico e abstractizante, tendo este último servido de instância legitimadora dos regimes demo-liberais e em particular da revolução francesa, que tanto obcecou e preocupou Burke.
Assim, à luz dos teorizadores do Contrato Social como Hobbes, Locke e Rousseau, os homens são livres e iguais por natureza, resultando a sociedade política de um acto de vontade. Mesmo tendo em conta que a figura deste contrato não deve ser tomada à letra, estamos em face de um ponto de vista inequívoco de individualismo ou atomismo social que ainda hoje marca as concepções sociais e políticas, bem como as próprias características desagregadoras das sociedades contemporâneas, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista ético-moral. Eis uma faceta da modernidade que desde sempre tem sido o alvo da crítica dos conservadores.
Ao invés, no quadro da perspectiva de Burke, a sociedade na sua articulação natural e orgânica com as instituições políticas e outras, não resulta de um contrato - no sentido jusracionalista do termo - mas em rigor é construída pela ordem espontânea e auto-poiética da história. Neste sentido, o homem - individualmente considerado - não é um ser determinante mas determinado pela história, ou seja, pela sociedade e pelas instituições.
Contudo, o fecundo realismo sociológico de Burke não é imune a uma perspectiva essencialista e universalista da natureza humana, de clara filiação cristã - mas não se cinjindo a isso -, que deita por terra o optimismo antropológico e perfectibilista das luzes, assim como as esperanças de melhorar consideravelmente a sociedade e as instituições constituídas.
Desta forma, o pessimismo antropológico de Burke não tem apenas a ver com o estigma causado pelo pecado original, escorando-se também numa perspectiva rigorosamente imanente, de acordo aliás com os padrões intelectuais da modernidade ilustrada, o que confere ambivalência e complexidade ao seu tradicionalismo conservador.
Apesar de desconstruir o modelo antropológico optimista das luzes revolucionárias, a perspectiva simultaneamente imanente e transcendente que fundamenta a antropologia burkiana não implica uma rejeição liminar ou linear do iluminismo e da liberdade individual, como algumas vezes se tem pensado, de forma simplista e apressada, colocando a perspectiva de Burke ao lado dos mais ferozes e intransigentes reaccionários, que criticaram a revolução francesa com pressupostos de natureza muito diversa. Por outro lado, isto não significa também que se possa ou deva fazer uma leitura liberal do autoritarismo tradicionalista mas anti-despótico de Burke, tendo em conta alguns aspectos separados do seu pensamento e das suas posições enquanto parlamentar Whig.
Com efeito, o pensamento contra-revolucionário de Burke em muitos e significativos aspectos - alguns deles já enunciados - respirou os ares sadios da modernidade. Ou seja, uma atmosfera intelectual liberta de fumos e nevoeiros metafísicos, que muito ficou a dever a pensadores britânicos como Bacon, Hume e Locke, porque imbuída de empirismo, realismo e pragmatismo.
Podemos aferir isto nos pressupostos epistémicos empiristas que norteiam a perspectiva de Burke nas questões já focadas e suas consequências de ordem político-institucional.
A este respeito, são de referir o historicismo imanentista que suporta o seu tradicionalismo, o realismo político e sociológico, o funcionalismo sociológico com consequências relativizantes nos seguintes tópicos:
na análise da operatividade social das instituições, das ideologias e das crenças. Esse tipo de perspectiva está aliás bem patente na sua obra mais conhecida, as Reflexões sobre a revolução francesa.
Neste texto, Burke, entre outros aspectos, avalia sobretudo as consequências sociais concretas da defesa da filosofia abstracta dos Direitos do Homem num contexto determinado, como era o da França iluminista e revolucionária do seu tempo. E as consequências, de acordo com a leitura pessimista de Burke, como sabem, foram terrríveis e catastróficas, tendo constituído até perversamente uma negação dos próprios Direitos do Homem. Na medida em que partindo da mais desconcertante anarquia, o turbilhão revolucionário acabou por se converter no mais insidioso despotismo. E este é apenas um exemplo, talvez o mais emblemático, de uma análise eminentemente consequencialista da política. Mas podemos apontar outros. O texto das Reflexões é fertil neste tipo de enfoque. Compreender o alcance e as consequências deste método acarretará uma resposta pertinente em relação a questões decisivas como as seguintes: Porque é que Burke é tão refractário em relação ao criticismo secularista das Luzes? Porque é que a teoria da Vontade Geral de Rousseau não é uma teoria política aceitável? Porque é que a Religião revelada é uma instituição indispensável numa sociedade?
Seja como fôr, é impossível desligar este funcionalismo consequencialista de âmbito sociológico, tão característico do conservadorismo burkiano, da dimensão essencialista de pessimismo antropológico. Esta contamina constantemente o seu realismo sociológico e histórico. Daí que o termo antroposociologia nos pareça o mais adequado para significar os não assumidos fundamentos deste conservadorismo.
Por conseguinte, o enganador realismo sociológico de Burke serve para reforçar de forma magistral a verdadeira pedra angular do pensamento direitista desde 1789: uma visão pessimista da natureza humana.
Esta componente fundamental do tradicionalismo entra assim em divergência profunda com o optimismo antropológico que determinou o voluntarismo revolucionário; e, de uma maneira geral, utilizando uma terminologia popperiana, todas as tentativas de concretizar uma engenharia social de larga escala. Desta maneira, a crença na perfectibilidade do homem implica nos revolucionários (e nos reformadores sociais radicais de todos os tempos) uma visão completamente diferente da sociedade, das instituições e do próprio processo histórico, legitimando de uma forma voluntarista o progresso.
Tendo em conta a importância da componente antropológica na individuação dos projectos sociais e políticos, esta merecerá da minha parte uma abordagem mais aprofundada, no que se refere ao pensamento de Burke.
E a este respeito importa afirmar o seguinte:
Aquilo que de diferentes maneiras, Burke e os conservadores de todos os tempos nos procuram dizer é que a imperfeição, a insuficiência e a dependência dos indivíduos são um dado adquirido. Tanto do ponto de vista biológico, como do ponto vista emocional e cognitivo. Esta perspectiva antropológica, no caso de Burke, é reforçada e enriquecida por um fundamento religioso e bíblico. Não devemos esquecer que Burke é sobretudo um pensador católico que se insurge contra os excessos criticistas dos Philosophes, eivados de secularismo deísta e até ateísta.
No entanto, mesmo no domínio religioso há que distinguir uma dimensão sincera e profunda de crença religiosa, que tem consequências antropológicas significativas, de uma dimensão não menos importante da religião que tem a ver essencialmente com a sua instrumentalidade em termos sociais e políticos, a qual de resto é coerente com o pessimismo antropológico. Esta defesa instrumental da religião revelada e constituída adequa-se profundamente ao funcionalismo sociológico-histórico do conservadorismo. Nas Reflexões sobre a revolução francesa e noutros textos de Burke a Religião revelada, ao contrário da natural, é encarada como um factor importantíssimo de coesão social e política, pois só este tipo de religião, tendo em conta as suas características, é portadora de funcionalidade social. Eis um ponto de vista típico da Direita política em geral e dos tradicionalismos. No entanto, a particularidade modernista da abordagem de Burke, que o situa claramente no âmbito de uma direita moderada, reside na não confusão entre ordem transcendente e ordem imanente da história e da política - confusão própria do radicalismo contra-revolucionário, ainda que haja uma articulação, e uma colaboração, por assim dizer, de ambas.
De facto, atendendo aos atributos essenciais do ser humano, só o pathos e a coercitividade sobrenatural (o medo de um castigo além-túmulo) trazidos por uma religião revelada como o cristianismo podem motivar suficientemente um respeito pela autoridade, pela ordem social e pelo outro. Por conseguinte, uma sociedade sem uma moral revelada é uma sociedade profundamente doente, condenada à desagregação, à anarquia e até ao despotismo com contornos totalitarizantes. Uma vez mais se revela aqui a articulação profunda entre essencialismo antropológico e funcionalismo sociológico, reveladora da paradoxal singularidade do tradicionalismo conservador de Burke.
Em que medida é que esta antropologia - moderna e tradicional ao mesmo tempo - implica uma desconstrução do racionalismo político veiculado pelo contratualismo revolucionário?
Na medida em que fundamenta e reforça a seguinte ideia:
Na imediatez da vida social, a esmagadora maioria dos indivíduos não se guia pela sua capacidade racional consciente - condição de possibilidade da liberdade civil na óptica de Rousseau. Este, é importante referi-lo, corporiza magistralmente o modelo de teoria política inaceitável para Burke, por esta e por outras razões de fundo, que infelizmente não terei tempo de aprofundar aqui. A outra razão de fundo para a rejeição do contratualismo moderno, aliás profundamente relacionada com a antropologia, tem a ver com a questão do método. Ora, para Burke, assim como para Montesquieu e Tocqueville, o método a utilizar em política é essencialmente sociológico-histórico, enquanto que para os contratualistas modernos em geral o método é essencialmente racional e dedutivo, logo inadequado por diversas razões.
Assim, de acordo com Burke, a componente racional não é de facto dominante no ser humano e um modelo teórico como o racionalismo político, presente em autores tão diversos como Locke, Rousseau e Kant passa completamente ao lado daquilo que é essencial na vida política e social, ou seja, a componente não-racional.
Segundo Burke o homem não é um ser fundamentalmente racional mas sim "religioso". Encontramos esta definição no texto já referido. Pode bem servir para significar toda a amplitude da perspectiva antropológica de Burke e quanto a mim não tem um sentido estritamente religioso, mas envolve as facetas mais seculares na abordagem dos atributos essenciais do homem. Significa que o homem é um ser essencialmente crédulo no âmbito cognitivo e comportamental, à semelhança do que dizia o céptico David Hume.
De acordo com o ponto de vista do autor das Reflexões sobre a Revolução Francesa, o que motiva verdadeiramente os homens, no âmbito da vida moral, social e política, não são os critérios de evidência racional, mas sim as paixões, as emoções e os sentimentos, bem como tudo aquilo que é marginal ou escapa a um exercício consciente e constante da racionalidade, tudo aquilo que resulta de uma adesão espontânea ou inconsciente. Daí que para os conservadores o homem seja essencialmente um ser de hábitos, de preconceitos e por conseguinte profundamente imerso na tradição. Só esses elementos possibilitam efectivamente a vida em sociedade porque disciplinam naturalmente as paixões.
O carácter essencialmente passional e espontâneo do homem implica também uma articulação profunda entre os domínios da estética e da política, questão com inegável actualidade. Ambas têm a ver profundamente com o jogo das paixões humanas e com a ordem social vigente. A própria estratégia persuasiva e estílistica das Reflexões sobre a Revolução Francesa, eivada de dramatismo nas descrições dos inauditos horrores revolucionários não é um aspecto acessório e ornamental. A retórica burkiana é bem a concretização daquele ponto de vista acerca do homem, da sociedade e da política na medida em que apela às emoções, mais talvez do que à razão.
Tendo em conta tudo isto, os fundamentos antropológicos e sociológicos do tradicionalismo de Burke, bem como a inadequação e perigosidade do racionalismo político, tornam-se agora muito mais inteligíveis.
Com efeito, no plano colectivo e social, o qual sobredetermina profundamente a vida individual, os processos de socialização, são de facto muito longos e não se constituem, por assim dizer, de um momento para o outro, ou dito de outro modo, de uma geração para outra. A sua lentidão constitutiva implica necessariamente a ideia de tradicionalismo.
Existe assim todo um conjunto de representações mentais de carácter não racional e não individual, que poderíamos definir como instituições culturais, emanadas forçosamente da tradição - ou seja, da longa duração histórica - que recebem uma valoração positiva. E isto porque possibilitam a vida em sociedade, volto a reiterar esta ideia fulcral, isto é, a conformação das potencialmente violentas e desagregadoras paixões individuais.
De facto, os preconceitos, os costumes, os preceitos morais oriundos de uma religião revelada como o cristianismo, independentemente da sua validade racional ou da sua universalidade, são operativos e funcionais do ponto de vista sociopolítico, já para não falar das instituições políticas e jurídicas - como a monarquia constitucional britânica - que têm um processo de constituição semelhante. A sua durabilidade histórica é a prova máxima de funcionalidade social e política. Nesta asserção encontramos o essencial do utilitarismo historicista de Burke. Este ponto de vista, paradoxalmente, determina e fundamenta um tradicionalismo inequivocamente escorado na modernidade e numa visão sociológica e empírica do homem. Consequentemente, este tradicionalismo não se pode confundir de forma alguma com o tradicionalismo reaccionário e providencialista de um De Maistre e de um Bonald, por exemplo, com pressupostos epistémicos e consequências políticas muito diferentes
E por isso os preconceitos, as tradições, os costumes, e tudo o que entra no campo de significação de uma ordem cultural com duração histórica e identidade própria, deve ser preservado zelosamente e não desconstruído, ao contrário do que tentaram fazer de forma irresponsável e arrogante alguns dos iluministas, através e em nome de uma razão pura e metafísica. E o resultado está à vista, diria Burke - o cortejo de excessos e violências trazido pela Revolução Francesa. A perversão completa daquilo que é verdadeiramente a vida em sociedade, a perversão completa da própria ordem histórica, a destruição do seu precioso e impessoal labor multissecular, o qual confere verdadeiramente a humanidade e a identidade ao homem. O que diria Rousseau a respeito deste ponto de vista?
Com efeito, de acordo com o parlamentar Whig, a vida em sociedade - com um certo grau de liberdade e felicidade - só é possível no quadro das limitações impostas pelas instituições às virulentas paixões dos homens. Daí que faça todo o sentido conservar aquelas que a história testou. Eis um ponto de vista com mais respeitabilidade teórica do que geralmente se pensa e que por isso mesmo importa seriamente discutir.
Posto isto, resta-me concluir esta intervenção com uma breve síntese a propósito do conservadorismo político de Burke, o qual não é mais do que uma consequência lógica de tudo o que disse atrás. Com efeito, a singularidade desta perspectiva acerca das Instituições políticas, só se torna verdadeiramente inteligível tendo em conta as coordenadas antropológicas e sociológicas atrás explanadas, na sua articulação profunda.
Por conseguinte, segundo Burke, a questão essencial em política não é ajuízar acerca da validade geométrica ou metafísica dos modelos teóricos de fundamentação das instituições políticas, como fez Rousseau. Dito de outro modo: o objectivo essencial da política não é a busca de uma forma de governo ideal porque perfeita, válida para todos os tempos e lugares, para todas as circunstâncias, ou mesmo é dizer, uma forma de governo feita à medida do Homem, abstractamente considerado. Eis precisamente o tipo de questões, que por diversas razões, não devem fazer parte do âmbito da política. Diz Burke, a respeito dos defensores dos Direitos do Homem, numa das frases mais significativas das suas Reflexões:
"The pretended rights of these theorists are all extremes; and in proportion as they are metaphysically true, they are morally and politically false. The rights of men are in a sort of middle, incapable of definition, but not impossible to be discerned. The rights of men in governments are their advantages; and these are often in balances between differences of good; in compromises sometimes between good and evil, and sometimes between evil and evil. Political reason is a computing principle; adding, subtracting, multiplying, and dividing, morally and not metaphysically or mahematically, true moral denominations." (Reflections on the Revolution in France (1790), London, Penguin, p.153)
Segundo o autor destas linhas, a questão essencial em política, no fundo, é saber se as instituições funcionam na prática ou não, independentemente da validade teórica ou metafísica dos seus modelos de legitimação, a qual passa ao lado da racionalidade política. E a única forma de ajuízar acerca da funcionalidade prática de um sistema de governo, por razões que já vimos, é testar os seu comportamento no âmbito da história. Por conseguinte, a durabilidade histórica das instituições (e não apenas as políticas) para um conservador como Burke, é um indicador seguro a respeito da sua funcionalidade social. Significa que as instituições se adequam naturalmente às "circunstâncias" - uma noção-chave no âmbito do conservadorismo de Burke - , isto é, aos condicionalismos da mais diversa ordem (sociais, culturais, geográficos), a que já fizemos referência. Desta forma fica mais clara a articulação entre "utilitarismo historicista" e tradicionalismo conservador:
"I cannot stand forward, and give praise or blame to any thing which relates to human actions, and human concerns, on a simple view of the object, as it stands stripped of every relation, in all the nakedness and solitude of metaphysical abstraction. Circunstances (which with some gentlemen pass for nothing) give in reality to every political principle its distinguishing colour, and discriminating effect. The circunstances are what render every civil and political scheme beneficial or noxious to mankind. Abstractedly speaking, government, as well as liberty, is good; yet could I, in common sense, ten years ago, have felicitated France on her enjoyment of a government (for she then had a government) without enquiry what the nature of that government was, or how it was administred? Can I now congratulate the same nation upon its freedom? Is it because liberty in the abstract may be classed amongst the blessings of mankind, that I am seriously to felicitate a madman, who has escaped from the protecting restraint and wholesome darkness of his cell, on his restoration to the enjoyment of light and liberty?" (Op. cit., p.90)
Assim, todas as questões fundamentais que entram no campo da política, e que infelizmente não poderei desenvolver aqui, como a articulação entre liberdade e autoridade, o âmbito dos direitos de cidadania, o modelo constitucional a adoptar, a relação entre política e religião, e muitas outras, equacionam-se paradoxalmente em função de um critério relativista e pragmático de "utilitarismo historicista". Este ponto de vista, na sua relacionação ambígua com a modernidade e as suas tendências imanentistas, traduz a individualidade ideológica do conservadorismo, bem como os seus paradoxos, que têm a ver sobretudo com a fractura entre essencialismo e relativismo.
Neste sentido, todas as grandes questões da política se equacionam em função de uma lógica coerente de moderantismo e equilíbrio, alicerçada nas instituições históricas, muito crítica em relação aos despotismos, que é detectável igualmente em pensadores do social e do político como Montesquieu e Tocqueville.
No tocante ao binómio liberdade-autoridade, o ponto de vista conservador de Burke, coerentemente com os fundamentos antroposociológicos atrás aduzidos, tendo em conta o contexto em que surgiu, não se pode confundir, nem com o individualismo liberal de matriz contratualista, nem com o holismo reaccionário de feição absolutista. Trata-se de um institucionalismo liberalizante que contraria todos os radicalismos, tanto de esquerda (jacobinismo) como de direita (reaccionarismo despótico). Em termos práticos podemos caracterizá-lo como um ponto de vista de autoritarismo moderado, que rejeita liminarmente as veleidades democratizantes, desastradamente ensaiadas em 1789, mas também o despotismo monárquico. Essas funestas orientações sociopolíticas têm em comum o facto de se pautarem por uma lógica de voluntarismo, inaceitável, ainda que em graus diferentes, porque nega o equilíbrio natural e regulador das instituições historicamente determinadas, dando livre curso ao jugo das paixões individuais.
Pelas razões que tenho expendido ao longo deste trabalho, torna-se então impossível confundir a perspectiva de Burke com uma qualquer forma de individualismo liberal, por definição abstractizante, seja qual fôr a sua matriz de fundamentação (contratualista, utilitarista, económica), na medida em que, no limite, dissocia ilegitima e simplisticamente o indivíduo do seu contexto social e histórico envolvente. Neste sentido, o labor hermenêutico, cultural e político dos conservadores tem sido sempre o de preservar as instituições das rebeliões individuais e colectivas, não obstante as suas imperfeições. Contrariamente, pode-se dizer com certo rigor, estabelecendo neste âmbito uma formulação clássica e possível desta divergência, eventualmente insanável, entre liberalismo e conservadorismo, que todo o labor dos teorizadores liberais tem sido o de defender e emancipar o indivíduo, quer enquanto entidade ontologicamente auto-suficiente e pré-existente, quer enquanto sujeito de direitos, dos abusos das instituições sociais e políticas tradicionais, como foi no contexto em que viveu e escreveu Burke, a monarquia absoluta É claro que a matriz antroposociológica das diversas formulações do liberalismo que historicamente têm surgido, diverge profundamente daquela que temos exposto aqui relativamente ao pensamento de Burke e dos tradicionalistas, em virtude do seu optimismo relativamente às potencialidades individuais e do seu pessimismo e olhar carregado de suspeita relativamente às instituições tradicionais. Esta postura, do ponto de vista histórico, como é sabido, legitimou e despoletou as revoluções liberais modernas, como a francesa e a portuguesa de 1820, sob o olhar reprovador e descrente dos conservadores.
Finalmente, para clarificar melhor as consequências políticas do utilitarismo historicista de Burke, podemos referir sucintamente o que está em jogo na sua crítica ao constitucionalismo revolucionário e à forma como a problemática dos direitos de cidadania é equacionada nesse contexto. Neste domínio, a posição crítica de Burke a respeito da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, (texto que significativamente estaria diante dos seus olhos durante o tempo em que redigiu as inflamadas Reflexões sobre a Revolução Francesa), é paradigmática em relação ao constitucionalismo conservador e ao seu modelo de cidadania, logicamente marcados pelo historicismo. Assim, em termos daquilo que é próprio da subtil racionalidade política, cuja especificidade procurámos caracterizar, não faz sentido edificar constituições com base em metafísicas do sujeito, com base nos pretensos Direitos do Homem. Aliás, o que Burke diz a respeito das constituições formais modernas, aplica-se coerentemente a todas as instituições sociais e políticas, e alicerça-se, em última análise, num utilitarismo historicista.
Desta forma, os reclamados Direitos do Homem, fundamento principal da constituição revolucionária e de uma cidadania alargada, não são politica e socialmente funcionais, na medida em que têm validade apenas numa dimensão de "nudez metafísica" (segundo as finas palavras do parlamentar). E 1789, segundo o olhar de Burke, provou-o melhor do que qualquer argumento teórico. De facto, o que significará politicamente, para o olhar concreto de Burke, considerarO Homem, enquanto sujeito de direitos, independentemente das circunstâncias de lugar e tempo? Uma vez mais, e de uma forma agudamente incómoda, este tipo de questionação, que podemos legitimamente alargar à problemática dos Direitos Humanos, pode destacar no ainda conturbado contexto mundial, a actualidade do seu pensamento.
Com efeito, no âmbito da política só existem direitos históricos, garantidos por instituições históricas concretas, como o sistema político e constitucional que Burke procurava preservar, das ameaças externas e internas. Assim como a liberdade, destaca Burke, ainda que considerada em abstracto seja algo de naturalmente bom, é, no entanto, um conceito vazio, inconsequente e até perigoso, se não for balizada por instituições testadas pelo tempo. Só nesse âmbito é que é possível uma certa liberdade, que no fundo nunca poderá nem deverá ser muito alargada, em virtude dos condicionalismos antropo-sociológicos já explicitados. Tudo isto mostra que no fundo existem profundas divergências entre o individualismo liberal e o institucionalismo conservador de Burke, apesar de algumas aparentes similitudes, como a defesa do mercado, e de instituições representativas e constitucionais. Por estas últimas razões também não podemos confundir o paradigma político de Burke com os pontos de vista próprios de um tradicionalismo radical e reaccionário, ainda que paradoxalmente faça todo o sentido incluir ambos os tradicionalismos na tão discutida categoria da direita política.